terça-feira, 13 de julho de 2010

bilhete de moça

"antes mesmo que acabasse o baile, maria adelaide dizia à mãe que não queria ficar um minuto mais que fosse.
— que é isso? disse-lhe a mãe. deu uma hora agora mesmo.
— não quero saber. vamo-nos embora.
— ora, meu deus!
— vamos, vamos.
não havia que dizer, a mãe era governada pela filha, e perderia o lugar no céu, se tanto fosse preciso, para não desgostá-la. note-se que não cedia pouco desta vez; cedia a ceia, que era excelente, e a boa viúva professava esta filosofia: — que as ceias excelentes são preferíveis às boas, as boas às más e as más às que não têm existência. sacrificava a melhor parte do baile; mas, enfim, contanto que a filha não padecesse.
padecer, padecia. no carro, logo que as duas entraram, maria adelaide começou a ralhar com tudo, com o carro, com a capa, com o calor, com o pó, com a mãe e consigo mesma. a mãe entendeu logo: era algum desgosto que o chico alves lhe dera. realmente, lembrou-se que o chico alves, indo despedir-se delas, nem alcançou que maria adelaide olhasse para ele. a moça deu-lhe os dedos, a pontinha apenas, e falou-lhe de costas; naturalmente estavam brigados.
a viagem foi atribulada. nunca o mau humor da moça foi tamanho nem tão explosivo. a mãe pagou pelo namorado, mas como era prudente e estava com fome, preferiu não dizer nada.
em casa, continuou o mau humor. a pobre criada da moça padeceu como nunca. maria adelaide entrou para os seus aposentos, furiosa, despiu-se às tontas, dizendo coisas duras, rasgando uma das mangas do vestido, atirando as flores ao chão, raivosa e indignada sem causa aparente. no fim, disse à criada que se fosse embora, e ficando só rebentaram-lhe as lágrimas. assim mesmo sozinha, ia falando, mordendo os lábios, dando punhadas no joelhos. depois arrancou da cadeira, foi à secretária e escreveu este bilhete:
'nunca pensei que o senhor fosse tão pérfido. nunca imaginei que pudesse proceder como fez no baile; creia que não manifestei o meu desgosto, por dois motivos: — o primeiro, porque ainda tive força de me dominar; segundo, porque depois do que o senhor me fez, nada pode haver mais entre nós. case-se com a viúva, se quer. mande as minhas cartas e adeus. esta determinação é irrevogável. qualquer tentativa de reconciliação obrigar-me-á ao que não quero'.
tinha dado expansão à cólera, deitou-se para dormir. o sono não veio logo; a raiva agitou a pobre moça, e só quando começou a madrugada foi que ela pôde dormir um pouco. no dia seguinte, o chico alves recebia este bilhete:
'desculpa algumas palavras que te disse ontem no baile. estava muito zangada. vem hoje tomar chá, e eu te explico tudo'.
fim de um bilhete"
(um bilhete, machado de assis, publicado em "a estação", 1885)

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