sábado, 23 de maio de 2009

'assim é que o amar e o amor...'

“tenta então, continuou sócrates, também a respeito do amor dizer-me: o amor é amor de nada ou de algo?
- de algo, sim.
- isso então, continuou ele, guarda contigo, lembrando-te de que é que ele é amor; agora dize-me apenas o seguinte: será que o amor, aquilo de que é amor, ele o deseja ou não?
- perfeitamente - respondeu o outro.
- e é quando tem isso mesmo que deseja e ama que ele então deseja e ama, ou quando não tem?
- quando não tem, como é bem provável - disse agatão.
observa bem, continuou sócrates, se em vez de uma probabilidade não é uma necessidade que seja assim, o que deseja deseja aquilo de que é carente, sem o que não deseja, se não for carente. é espantoso como me parece, agatão, ser uma necessidade; e a ti?
- também a mim - disse ele.
tens razão. pois porventura desejaria quem já é grande ser grande, ou quem já é forte ser forte?
- impossível, pelo que foi admitido.
- com efeito, não seria carente disso o que justamente é isso.
- é verdade o que dizes.
...
disse então sócrates: - não é isso então amar o que ainda não está à mão nem se tem, o querer que, para o futuro, seja isso que se tem conservado consigo e presente?
- perfeitamente - disse agatão.
- esse então, como qualquer outro que deseja, deseja o que não está a mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente; tais são mais ou menos as coisas de que há desejo e amor, não é?
- perfeitamente - disse agatão.
- vamos então, continuou sócrates, recapitulemos o que foi dito. não é certo que é o amor, primeiro de certas coisas, e depois, daquelas de que ele tem precisão?
- sim - disse o outro.
- depois disso então, lembra-te de que é que em teu discurso disseste ser o amor; se preferes, eu te lembrarei. creio, com efeito, que foi mais ou menos assim que disseste, que aos deuses foram arranjadas suas questões através do amor do que é belo, pois do que é feio não havia amor. não era mais ou menos assim que dizias?
- sim, com efeito - disse agatão.
- e acertadamente o dizes, amigo, declarou sócrates; e se é assim, não é certo que o amor seria da beleza, mas não da feiúra? concordou.
- não está então admitido que aquilo de que é carente e que não tem é o que ele ama?
- sim - disse ele.
- carece então de beleza o amor, e não a tem?
- é forçoso.
- e então? o que carece de beleza e de modo algum a possui, porventura dizes tu que é belo?
- não, sem dúvida.
- ainda admites por conseguinte que o amor é belo, se isso é assim?
e agatão: - é bem provável, ó sócrates, que nada sei do que então disse?
- e no entanto, prosseguiu sócrates, bem que foi belo o que disseste, agatão. mas dize-me ainda uma pequena coisa: o que é bom não te parece que também é belo?
- parece-me, sim.
- se portanto o amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ele carente.
- eu não poderia, ó sócrates, disse agatão, contradizer-te; mas seja assim como tu dizes.
- é a verdade, querido agatão, que não podes contradizer, pois a sócrates não é nada difícil.
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e quem é seu pai - perguntei-lhe - e sua mãe?
- é um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. quando nasceu afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de prudência, recurso. depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a pobreza, e ficou pela porta. ora, recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de zeus e, pesado, adormeceu. pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o amor. Eis por que ficou companheiro e servo de afrodite o amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também afrodite é bela. e por ser filho o amor de recurso e de pobreza foi esta a condição em que ele ficou. primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio ele recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.
nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa.
nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. não
deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso.
...
e eu lhe disse: - muito bem, estrangeira! é belo o que dizes! sendo porém tal a natureza do amor, que proveito ele tem para os homens?
- eis o que depois disso - respondeu-me - tentarei ensinar-te. tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem; e é do que é belo, como dizes. ora, se alguém nos perguntasse: em que é que é amor do que é belo o amor, ó sócrates e diotima? ou mais claramente: ama o amante o que é belo; que é que ele ama?
- tê-lo consigo - respondi-lhe.
- mas essa resposta - dizia-me ela - ainda requer uma pergunta desse tipo: que terá aquele que ficar com
o que é belo?
- absolutamente - expliquei-lhe - eu não podia mais responder-lhe de pronto a essa pergunta.
- mas é, disse ela, como se alguém tivesse mudado a questão e, usando o bom em vez do belo, perguntasse: vamos, sócrates, ama o amante o que é bom; que é que ele ama?
- tê-lo consigo - respondi-lhe.
- e que terá aquele que ficar com o que é bom?
- isso eu posso - disse-lhe - mais facilmente responder: ele será feliz.
- é com efeito pela aquisição do que é bom, disse ela, que os felizes são felizes, e não mais é preciso ainda perguntar: e para que quer ser feliz aquele que o quer? ao contrário, completa parece a resposta.
- é verdade o que dizes - tornei-lhe.
- e essa vontade então e esse amor, achas que é comum a todos os homens, e que todos querem ter sempre consigo o que é bom, ou que dizes?
- isso - respondi-lhe - é comum a todos.
- e por que então, ó sócrates, não são todos que dizemos que amam, se é que todos desejam a mesma coisa e sempre, mas sim que uns amam e outros não?
- também eu - respondi-lhe - admiro-me.
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assim é que o amar e o amor não é todo ele belo e digno de ser louvado, mas apenas o que leva a amar belamente.
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o amante do caráter, que é bom, é constante por toda a vida, porque se fundiu com o que é constante. ora, são esses dois tipos de amantes que pretende a nossa lei provar bem e devidamente, e que a uns se aquiesça e dos outros se fuja. por isso é que uns ela exorta a perseguir e outros a evitar, arbitrando e aferindo qual é porventura o tipo do amante e qual o do amado.
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um só caminho então resta à nossa norma, se deve o bem-amado decentemente aquiescer ao amante.”
(o banquete, platão – a.c. 416)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

objetivo principal...

"no processo de desenvolvimento do indivíduo, o programa do princípio do prazer, que consiste em encontrar a satisfação da felicidade, é mantido como objetivo principal. a integração numa comunidade humana, ou a adaptação a ela, aparece como uma condição dificilmente evitável, que tem de ser preenchida antes que esse objetivo de felicidade possa ser alcançado. talvez fosse preferível que isso pudesse ser feito sem essa condição. em outras palavras, o desenvolvimento do indivíduo nos parece ser um produto da interação entre duas premências, a premência no sentido da felicidade, que geralmente chamamos de 'egoísta', e a premência no sentido da união com os outros da comunidade, que chamamos de 'altruísta'"...
(freud, o mal-estar na civilização, 1930)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

latinha...

"um dia eu estava num barquinho com algumas pessoas, membros de uma família de pescadores de um pequeno porto. nessa ocasião, nossa bretanha ainda não estava nas condições de grande indústria, nem da frota de pesca, o pescador pescava em sua casquinha de noz, com seus riscos e perigos. eram esses riscos e perigos que eu gostava de partilhar, mas não eram riscos e perigos o tempo todo, havia também seus dias de bom tempo. um dia, então, em que esperávamos o momento de puxar as redes, o chamado joãozinho, vamos chamá-lo assim – ele desapareceu, como toda a sua família, exatamente pela tuberculose, que era nessa época a doença verdadeiramente ambiente na qual toda aquela camada social se deslocava – me mostra alguma coisa que boiava na superfície das ondas. era uma latinha, e mesmo precisamente, uma lata de sardinha. ela boiava ali ao sol, testemunha da indústria de conserva, que estávamos, aliás, encarregados de alimentar. ele respelhava ao sol. e joãozinho me diz – tá vendo aquela lata? tá vendo? pois ela não tá te vendo não!
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o que é luz tem a ver comigo, me olha, e graças a essa luz, no fundo do meu olho, algo se pinta – que de modo algum é simplesmente a relação construída, o objeto sobre o qual demora a filosofia – mas que é impressão, que é borboteamento de uma superfície que não é, de antemão, situada para mim em sua distância. aí está algo que faz intervir o que é elidido na relação geometral – a profundidade do campo, com tudo que ela apresenta de ambíguo, de variável, de não dominado de modo algum por mim. é mesmo mais ela que me apreende, que me solicita a cada instante, e faz da paisagem coisa diferente de uma perspectiva, coisa diferente do que chamei de quadro.
...
e eu, se sou alguma coisa no quadro, é também sob essa forma de anteparo, que ainda há pouco chamei de mancha."
(jacques lacan – seminário 11 – a linha e a luz)
(figura: os embaixadores, quadro de hans holbein, 1533)
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lá.tinha...

domingo, 17 de maio de 2009

...alma deserta

"nada consigo fazer
quando a saudade aperta
foge-me a inspiração
sinto a alma deserta
um vazio se faz em meu peito
de fato eu sinto
em meu peito um vazio
me faltando as tuas carícias
as noites são longas
e eu sinto mais frio.
procuro afogar no álcool
a tua lembrança
mas noto que é ridícula
a minha vingança
vou seguir os conselhos
de amigos
e garanto que não beberei
nunca mais
e com o tempo
essa imensa saudade que sinto
se esvai"
(peito vazio - cartola e elton medeiros)

quinta-feira, 14 de maio de 2009

"a vida veste ainda sua mais dura pele..."


"...meu caminho divide,
de nome, as terras que desço.
entretanto a paisagem,
com tantos nomes, é quase a mesma.
a mesma dor calada,
o mesmo soluço seco,
mesma morte de coisa
que não apodrece mas seca.
...
vou na mesma paisagem reduzida à sua pedra.
a vida veste ainda sua mais dura pele..."
(do riacho as éguas ao ribeiro do mel - joão cabral de mello neto)
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apelo pela doçura das coisas...

domingo, 3 de maio de 2009

um chorinho...






















"ai, o meu amor, a sua dor, a nossa vida
já não cabem na batida
do meu pobre cavaquinho
ai, quem me dera
pelo menos um momento
juntar todo sofrimento
pra botar nesse chorinho
ai, quem me dera ter um choro de alto porte
pra cantar com a voz bem forte
e anunciar a luz do dia
mas quem sou eu
pra cantar alto assim na praça
se vem dia, dia passa
e a praça fica mais vazia

vem, morena,
não me despreza mais, não
meu choro é coisa pequena
mas roubado a duras penas
do coração
meu chorinho
não é uma solução
enquanto eu cantar sozinho
quem cruzar o meu caminho,
não para não

mas eu insisto
e quem quiser que me compreenda
até que alguma luz acenda,
este meu canto continua
junto meu canto a cada pranto, a cada choro,
até que alguém me faça coro pra cantar na rua..."
(um chorinho - chico buarque)
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'este meu canto continua... até que alguém me faça coro...'

sexta-feira, 1 de maio de 2009

isso é coisa da antiga



"na tina, vovó lavou, vovó lavou
a roupa que mamãe vestiu quando foi batizada
e mamãe quando era menina teve que passar, teve que passar
muita fumaça e calor no ferro de engomar

hoje mamãe me falou de vovó, só de vovó
disse que no tempo dela era bem melhor
mesmo agachada na tina e soprando no ferro de carvão
tinha-se mais amizade e mais consideração

disse que naquele tempo a palavra de um mero cidadão
valia mais que hoje em dia uma nota de milhão
disse afinal que o que é de verdade ninguém mais hoje liga
isso é coisa da antiga, ai na tina...

hoje o olhar de mamãe marejou, só marejou
quando se lembrou do velho, o meu bisavô
disse que ele foi escravo mas não se entregou à escravidão
sempre vivia fugindo e arrumando confusão
disse pra mim que essa história do meu bisavô, negro fujão
devia servir de exemplo a "esses nego pai joão"

disse afinal que o que é de verdade
ninguém mais hoje liga
isso é coisa da antiga..."
(coisa da antiga - wilson moreira e nei lopes - clara nunes)


'o que é de verdade ninguém mais hoje liga'...